segunda-feira, 12 de abril de 2010

O tapete e a fechadura

Marc Chagall

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Por debaixo do seu tapete despreendido do solo, um universo de poeira de medo se acumulava sob seus pés.
E lá estava ele, jovialmente empurrando mais poeira para debaixo de seu nobre tapete persa colorido. Ele não sorria, pois não sentia-se feliz. Mas também  não sentia-se triste. Na verdade o que ele sentia era orgulho.
Batia no peito estufado, com olhos brilhantes e ágeis ao defender suas teorias em forma de palavras soltas no ar. Lindas palavras, mas quase utópicas, quase mentirosas, que na verdade só o afastavam do portão do amor e felicidade.

Alguns aplaudiam seus pensamentos, afinal, ele se expressava com tamanha convicção e naturalidade que era  impossível questioná-lo. Ele sentia-se seguro por detrás de seu discurso "abolicionista".
Ao voltar para a casa,  ao chegar no silêncio de seu quarto, no seu mundo com sombras e luzes, ele sentia um enorme vazio, que tentava preencher em vão.

Levantava seu tapete, via a poeira acumulando, chances desperdiçadas, sonhos e ilusões misturados entres os grãos de pó.

Simplesmente ele tinha medo. Um medo feroz, mas totalmente inconsciente de se ferir pelo amor.

Para defender-se, apoiava-se em teorias, como alguém que escora num muro para não cair de cansaço.  Incessantemente buscava a perfeição, pois ele sabia que tal utopia não existia. Criava amores irreais, impossíveis, platônicos, que iam se alimentando de sua imaginação, pois assim ele sentia as inebriantes sensações da paixão e do amor, mas sem necessariamente se arriscar. Afinal, eram amores impossíveis, beirando a insensatez.
Risco era algo que ele não desejava correr. Dois pés no chão e cabeça nas nuvens, era o máximo que se permitia. Mal sabia ele, que para se encontrar o verdadeiro amor, era necessário sim despreendimento, mas o desprender-se do medo de arriscar.

De íris em íris, buscava uma que lhe cegasse. E como o amor é bicho sutil e suave, ele nunca a encontrava.
Quando batiam à sua porta, alguem de carne e osso oferecendo amor real, ele se encolhia. Se recolhia em desculpas e se auto sabotava, inventava motivos plausíveis para si e para os outros. Resistia.

No fim, permanecia entre as quatro paredes e muros de pedra que erguia ao seu redor, sua fortaleza, que o impedia de buscar os caminhos incertos e inseguros rumo ao amor...

Ela, que sem saber porque e como, espiava pelo buraco da fechadura. Ele com suas portas fechadas, não permitia-se ser tão invadido. Mas ela, o espiava. Enxergava-o varrendo minunciosamente grão por grão para debaixo de seu tapete.

Logo estaria na hora de dar às costas e partir. Mas irresistivelmente, espiava mais um pouco.

Havia meio sorriso em seu rosto, com meia lágrima caindo do lado oposto.

Adoraria abrir a porta e ajudá-lo a varrer tudo para longe.

Mas sabia que era uma escolha dele. E se assim ele o desejava, quem era ela para questioná-lo?

Observou mais alguns segundos aquela figura sentar no bolo de poeira que se acumulava. Não queria deixá-lo tão só. Mas não tinha outra escolha.

Ela o enxergava, o entendia. Mas não compreendia o fato da felicidade sempre escapar pelos dedos, quando ela se encontra tão perto, espiando pela fechadura, esperando a porta se abrir.

Dar às costas, foi tarefa árdua. Mas finalmente conseguiu, não era a primeira vez que tinha que dar adeus.

O meio sorriso de canto e a meia lágrima ainda estavam fixos em sua face.

Talvez demorariam a diluir-se.

Ela confiava no tempo e no destino.

Deu os primeiros passos e se afastou.

Caminhou até sua casa. E no seu quarto se trancou. Escreveu essas palavras. Recolheu o pranto, guardou seu manto de amor, rasgou rabiscos e rascunhos censurados, guardou o lamento e fechou os olhos na cama.

Só uma coisa não conseguiu guardar: a cor daquele olhar a perseguí-la nos seus sonhos...

Sonhou noite adentro. Foi o que lhe restou.

13/11/2009 às 00:44h

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De tanto espiar, num misto de curiosidade, fascinação e desejo, um dia encontrou a porta semi aberta.
Entrou com passos hesitantes; o aposento ainda estava semi iluminado, numa penumbra solitária.

Boca seca e coração descompassado; lá estava ele, olhando-a com olhos penetrantes, duros como facas e perfumados como flores, convidando-a para entrar, embora ainda se mostrasse desconfiado.
Frente a frente, as faces já não mais escondiam os recônditos do desejo, transbordando em beijos azulados.

Desvendaram-se juntos; a cada segundo que transcorria vertiginoso, a cada melodia descoberta, a cada poesia revelada, se descobriam um só.
Embora ele a aceitasse em seu mundo particular, persistia uma incômoda sensação de que ele a expulsaria a qualquer hora. Superando o medo, ela permaneceu sob bruma aveludada púrpura que se formou ao redor.

Ele, tão azulado, adocicado e etéreo, tingia-se de carmim intenso, a cada abraço partilhado; a cada riso fácil e em cada desejo que explodia em um beijo, nos corpos sedentos que se encaixavam.
Ela ignorava qualquer faceta da realidade externa que pudesse atrapalhá-los. E se, por breves instantes tudo não parecia fazer sentido, prendia-se no brilho daquele olhar entre sombras e luzes que lhe convidava a entrar.

Ali ficou.
Nem sabe por quanto tempo.
Quando se vive em deslumbramento mágico, o tempo se dilui e fragmenta, etéreo em seu universo; ele passa a não existir.
Cochilou relaxada com um sorriso feliz a tingir a sua face.

Sonhou.
Estava num barco navegando.
Mar.
Garoa molhando seu rosto.
Chuva.
Tempestade furiosa.
Ondas gigantes.
Naufrágio.

Acordou com a boca seca e peito irrompendo em soluços. Estava soterrada, como se estivesse debaixo de areia grossa.

Foi recuperando os sentidos lentamente. O que lhe teria acontecido?

Logo percebeu que não era sonho, naufrágio e areia.
Seu corpo estava soterrado por poeira, ele a tinha empurrado para debaixo de um tapete persa colorido.
Algo não fazia sentido e os porquês assombraram seu corpo doído, sua mente sedenta de respostas.

Chorou seu manto de incompreensão.
Muita água e sal escorria por suas faces rubras, misturadas ao pó.

Como ele poderia enterrá-la se podia jurar que ainda via o mesmo brilho do olhar em chama viva?
Embora as palavras dele estivessem carregadas de razão, de embasamentos teóricos,  no tom calmo, frio e distante; ela não tinha dúvidas.
Inexplicavelmente ela enxergava seu coração.
Era o medo, o bicho papão de suas fantasias e ilusões, rondando-o dia e noite.
Tentou sacudí-lo, abrir seus olhos.
Imóvel como uma pedra cravada no chão, ele defendeu até o fim sua falsa convicção.
Não havia mais espaço para ela.

Derrotada, pois não tinha armas para lutar com tamanho vício arraigado em sulcos profundos, ela caminhou de volta.
A revolta ainda atormentava-lhe a emoção. Quantos erros implorando perdão! Quanta vida desperdiçada em vão!

Foi uma longa viagem de volta para casa.
Chegou, exausta.
Coberta de poeira úmida, pelas lágrimas jorrando de seus olhos, ela ardia em tristeza.

Ela se jogou na água cristalina.
Enquanto se lavava, esfregava sua mente e coração implorando por alívio.

Quanto mais implorava, mais lhe vinha tormento.

A dor e a incompreensão marcavam fundo seu coração.

Fechou os olhos. Ela só queria se perder nos sonhos, se perder no esquecimento, se perder daqueles momentos que viveu ao seu lado...

Sentia arder cada parte de si; ele já estava muito enraizado em cada fragmento de seu ser estar.

No meio do turbilhão, no olho do furacão da dor, ela nem conseguiu dar final à estória.

Ficou assim, só; por dar um fim...

Ficou assim, só; com sua dor...

Ficou assim, só; tentando assassinar o que sobrou do seu amor...

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2 comentários:

  1. Que conto belo, poético; e, ao mesmo tempo, áspero, sagaz, reflexivo.
    Parabéns pelo texto e também pelo blog!

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  2. Maravilhoso texto, prima! Adoro o seu blog.
    Beijos!
    Carol

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