terça-feira, 12 de outubro de 2010

A prima Vera.

Monet
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Esse ano ela chegou mais tímida. Mais calada que o normal. Mas mesmo assim, foi recebida com festa e alegria, como todos os anos a recebemos. A prima Vera, é muito querida da família.

Quando criança, não entendia muito bem o porquê de tanta euforia. Bastava recebermos a carta com sua letra redonda e doce, nos dizendo que estaria em breve em nosso lar, a casa agitava-se; mamãe começava os preparativos para a grande festa da chegada da prima mais querida de todas.

-Mamãe. A tia Vera vai chegar quando? Ela terá estômago para comer tudo isso e saborear tantos doces? Por que tantos balões coloridos?

Mamãe gentilmente me corrigia, mas sem tirar os olhos do bolo que recheava feliz:

-Filhinha, não é Tia Vera. É a prima Vera! Ela é muito especial para todos nós da família. Ela traz sempre muitas flores, distribui sorrisos, aquece nossos corações com esperanças renovadas, é uma presença muito requisitada por todos.

Fez uma pausa e resmungou algo sobre o glacê que decorava o bolo. Trocou a espátula e continuou apressada:

-Ela mora muito longe. Onde nunca conseguiríamos visitá-la. E ela só vem uma vez ao ano e permanece conosco por pouco tempo. Sentimos muita saudade quando ela se vai, mas ficamos ansiosas à espera de que o ano voe. E ele sempre voa; quando menos esperamos, ela chega radiante para nos encher de alegria.

E todos os anos era assim. Eu acompanhava a sua chegada. E era motivo de alegria, pois tínhamos festa quase todos os dias! A casa estava sempre cheia, a mesa sempre farta, os vizinhos entravam e saíam como se fossem moradores.

Só quando fui ficando mais mocinha, é que entendi porque a Prima Vera era tão querida. Ela nos deitava em sua saliente barriga, e nos ninava até pegarmos no sono, contando histórias de sua terra longínqua. Fazia doces, brincava exaustivamente conosco no parque, nos mimava até enjoar.


A prima Vera chegou este ano mais calada que o normal. Mais tímida. Mas mesmo assim, foi recebida com muita alegria.

Eu, tão atarefada, não dei muita importância, como fazia. Mas a recebi com um abraço carinhoso.

Entretida em vários pensamentos, tecia fios sob as feridas, sob os vários rombos de incompreensão na camisa da vida. Costurava inquieta. Outras vezes me cansava de remendar e parava olhando dispersa para o horizonte.

Num desses momentos, a prima Vera chegou sem que eu percebesse e sentou-se ao meu lado.

-Menina, o que fazes?

-Prima querida, costuro essas camisas com tantos rombos. Elas foram maltratadas por atos de desamor e impulsividade.

-E por que não compra camisas novas?

-Por que sinto que só terei paz, se remendar meus velhos erros.

-Paz? Você quer ter paz?

-Sim, prima. Estou às voltas de mim mesma, remoendo meus tristes atos e os desafetos que não fui capaz de transformar.

A prima Vera riu, e eu pude enxergar o velho brilho do seu olhar a acariciar meu sorriso. Me deitou em seu colo e disse:

-A paz... você quer saber do que é feita a paz?

Assenti com a cabeça.

-Comece fechando os olhos. Respire. Esqueça. Absolutamente tudo. Não existe o passado e tampouco o futuro. Só o hoje. Só esse instante. Encha os pulmões de ar. Tudo que puder sorver. Quantas vezes for necessário para que sinta renovação de sopro em sua vida. Agora, vá em suas feridas. Não dê atenção a elas. Precisam de tempo e esquecimento, apenas isso. Caminhe até os sonhos. Como eles estão? Empoeirados? Ou estão jogados e maltratados num canto? Pegue um por um, e limpe-os. Arrume-os. Cante para eles. Abra as janelas. Deixe o sol entrar. Permita que a luz desintegre o bolor e as raízes de tanto medo e desamor.

-Prima, tem um baú que não consigo abrir. Está tão trancado! E tem um sonho, que já estava limpo, como se estivesse sendo usado, que de repente foi arremessado contra a parede. Peguei cuidadosamente e tentei cantar para ele. Mas a minha voz não sai! Não consigo mais cantar!

-Não chore menina! Calma... há a hora certa para que tudo se abra, para que o som volte a ecoar. Se concentre na limpeza. Percebe como tudo está mais limpo? Como agora podemos nos permitir habitar este lugar?

Assenti com a cabeça.

-Agora vá até a janela. Vislumbre o horizonte. Imagine os raios de sol penetrando em cada pedacinho do interior do seu quarto. Sinta o astro tocando sua face e aquecendo seu coração. Ele te enche de energia. Te dá coragem, e... um par de asas!Você agora tem um par de asas! Voe! Para longe! Para onde se sente feliz.E quando voltar tenho certeza que o sol terá cuidado de cada pedacinho do seu quarto. Conseguirá cantar para cada um de seus sonhos. Conseguirá sorrir e abrir cada baú trancafiado pelo medo.Voe!

Mais leve e de olhos fechados, me vi sobrevoando o azul do mar.


Escutei a voz da prima Vera  ao longe me dizendo:

-A paz, é isso! É a capacidade de sobrevoar as feridas, é se encher de ar no sopro da vida, sorrir e prosseguir feliz! Voe! E quando pousar, não se esqueça de agradecer...e viver!

Voei para muito longe. Às vezes é preciso se perder, para então se encontrar.

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2 comentários:

  1. Adorei! Tem uma ternura incomum! Voe! :D

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  2. "Às vezes é preciso se perder, para então se encontrar."

    Quase sempre, não? E às vezes, se encontrar em palavras como as tuas...

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